segunda-feira, 30 de maio de 2016

A fantástica solidão no tempo

Em Cem anos de solidão, uma peste perturba a população de Macondo; a doença da insônia assombra às pessoas porque mata suas lembranças e deixa corpos vazios sob efeito da “alucinada lucidez”. Eu poderia culpar Gabriel García Márquez e dizer que contrai a doença depois do contato físico com os personagens tão sólidos que ocuparam lugar na minha casa durante aquele tempo. Mas isso só seria conveniente para justificar uma condição própria de longa data: quando a vontade de ler histórias supera a necessidade de dormir e a memória falha talvez pelo excesso de informações, talvez pelo sono acumulado.

Pensei em uma explicação piegas para situação, consiste em acreditar que o ritual de leitura na madrugada é a experiência mais sagrada possível de um relacionamento com os livros, porque nessas horas o silêncio tece ligações ininterruptas. Depois, as cores da aurora iluminam as páginas do livro de um jeito delicioso, é irresistível a possibilidade de sentar na varanda e continuar lendo. Logo está na hora de trabalhar e garantir se não a sobrevivência pelo suor, ao menos a ilusão de estar fazendo algo para contribuir nos giros das engrenagens sociais. Terminadas as obrigações, resta escolher entre voltar a ler enquanto submersa em bebidas energéticas ou entregar os pontos ao inconsciente. Por isso a contagem de horas é o maior desafio da sanidade.

Portanto, assumido o desequilíbrio tonto dos que não dormem, ainda tenho coragem de compartilhar reflexões de uma mente desgastada. E o que tenho investigado é o responsável pelo prazer da leitura: o sentimento de intimidade com o texto. Desvendar metáforas e entender referências muitas vezes supera uns diálogos cotidianos desinteressados. Ainda mais porque parece que chegamos na época de Fahrenheit 451 em que não há conversas que não sejam intermediadas e até distorcidas por tecnologias. Fatos da vida real têm que  competir com distrações dos aplicativos de smartphones em nossas mãos. Daí quem não quer se sentir sozinho, aprende a ler e, na madrugada da civilização, aprende como os sentimentos têm corpos nas letras.

E como a solidão está representada na literatura?  

Mesmo que o personagem que tenho maior afeição percorra longos caminhos, com os pés machucados, aflito e sem ter com quem conversar, enfrentando adversidades meteorológicas, inimigos humanos e monstros indescritíveis e isso me cause mal estar, ainda tenho que admitir que sua existência é confortante. Durante a leitura, sendo parceira de aventuras, sou fiel ao compromisso de expectadora: dar atenção a cada movimento é como cuidar de alguém querido. Faz sentido, já que eu sou tão responsável pelo personagem existir no mundo quanto seu criador.