O
ator, além do que é necessário para decorar suas falas, costuma tomar um tempo
para se preparar para uma representação. Ele precisa acessar o personagem de
alguma forma; assim, ele tem a garantia de que seu trabalho será notado e
aplaudido por ter convencido a audiência. Qualquer um consegue notar uma
interpretação forçada – na maioria das vezes ela se parece com uma gravação de
áudio acompanhada de gestos mecânicos. Porém, quando bem preparado, ele não
precisa sequer tentar lembrar qual a próxima ação do roteiro, ele a comete como
se fosse algo natural e reage às situações como se fossem as de sua vida. E
então, isso não é fingir; a arte reflete tudo o que conhecemos ou desejamos
conhecer. Portanto, quem escreve a história que
será encenada tem a difícil missão de demonstrar a existência de autenticidade
viva, algo que o leitor possa identificar. Nesse
caso é impossível resistir à tentação de acrescentar disfarçadamente
experiências pessoais ou de conhecidos. Aprendemos com as nossas quedas e
observando os outros que caem e suas reações; se o autor tirou uma lição válida
da própria vida, faz sentido que ele queira compartilhar isso com outros.
Posso
problematizar aqui, então, as noções de imitação e representação quando se tornam
complexas por se tratarem do autor falando de si. Muitas vezes enfrentamos
obstáculos na vida que parecem instransponíveis; esses escritores encontraram a
solução na literatura e, de alguma forma, renasceram após concluir uma obra,
com todos os seus estorvos. E quando a intimidade é escrita de forma tão nua e
frágil ainda há a possibilidade de não se expor tanto, a sua história de vida
pode se disfarçar na forma de alegorias ou personagens fictícios.
A
interpretação do texto dito fictício somada às informações biográficas do autor
cria a sensação de mistério a ser descoberto pelo leitor quando a trama e as
notícias da vida real têm pontos em comum. Acontece que temos contato com o
livro, aprovamos, conhecemos os personagens que nos pegam pela mão e até apagam
o desconforto que sentiríamos por invadir de tal modo outras vidas possíveis.
Depois, ao terminar a história, fica a saudade, procuramos capítulos e trechos
soltos pela rua até que chegamos à casa do autor e não há ambiente mais
propício a obsessão. Queremos olhar pela janela, brincar com o cachorro tão
parecido com o do livro, rever objetos e identificá-los como se já tivessem nos
pertencido.
Reparamos
que escritores com histórias de vida conturbadas despertam mais facilmente a
tendência do leitor a relacionar suas obras com fatos. É como se esperássemos
uma confissão ou pedidos de socorro entre um parágrafo e outro. A escritora
inglesa, Virginia Woolf, tem uma biografia repleta de experiências traumáticas e nela nos acostumamos a encontrar depoimentos sobre sua fragilidade emocional e
tendências depressivas que a levaram a cometer suicídio em 1941. Em suas obras,
então, costumam-se identificar relações diretas da sua vida cotidiana com a dos
personagens. Muito do cotidiano da autora também está em seus diários, que ela começou
a escrever em 1897, por volta dos seus 15 anos.
Depois da morte do irmão, Virginia demorou 14 anos para
escrever O Quarto de Jacob. Esse é considerado o seu primeiro romance modernista, ou
seja, o trauma causou uma mudança, abalou estruturas emocionais e depois de
tanto tempo mastigado produziu o conteúdo de um livro. Parece ter sido um meio,
mesmo que possivelmente doloroso, da autora enfrentar o fantasma do passado e
seguir a diante.
Virginia
Woolf não concentrou toda a sua atenção em objetos e casos referentes a sua
família ou seus traumas pessoais, ela refletiu muito sobre a escrita, atividade
mais gratificante de sua vida e essência de sua análises estéticas e
filosóficas. Cercada por livros, logo após transformar sua casa em uma editora,
ela esteve sempre atenta aos problemas enfrentados por outros escritores e
motivos de crítica dos estudiosos. Isso se refletiu em sua ficção, como no
conto An Unwritten Novel em que o
narrador encontra com os olhos de uma mulher com expressão muito triste e
inicia um monólogo silencioso sobre a dona daqueles olhos, imagina o que ela
está indo fazer e chega a criar pensamentos preocupados que estariam passando
pela cabeça daquela mulher assim como um autor escreve falas ao seu personagem:
The unhappy woman, leaning a little forward, palely and colourlessly addressed me — talked of stations and holidays, of brothers at Eastbourne, and the time of year, which was, I forget now, early or late. But at last looking from the window and seeing, I knew, only life, she breathed, “Staying away — that’s the drawback of it —” Ah, now we approached the catastrophe, “My sister-in-law”— the bitterness of her tone was like lemon on cold steel, and speaking, not to me, but to herself, she muttered, “nonsense, she would say — that’s what they all say,” and while she spoke she fidgeted as though the skin on her back were as a plucked fowl’s in a poulterer’s shop-window. (WOOLF, 1921)
O narrador, que observa um
desconhecido e a partir de uma simples particularidade desenvolve um trama e
insere sentimentos e indagações sobre aquelas formas, é como o escritor que tem
poder para escolher memórias e desenvolver grandes histórias. Virginia marca de
forma simbólica algo que ela faz, toma como ponto de partida uma mulher de
olhos triste que talvez tenha realmente visto em um trem certo dia e acrescenta
tantas divagações que por fim, o leitor se perde na história e só retorna a realidade
no final do conto quando o narrador também sai do devaneio e percebe que havia
criado uma biografia falsa completa para a mulher. Da mesma forma que os
leitores fazem com os escritores quando acreditam fielmente que eles entregam
detalhes pessoais.
Considerando
o modo de composição, complementamos a análise sobre a
forma como o leitor se relaciona com o texto e, por isso, não podemos deixar de
pensar quais foram os motivos do autor para estabelecer seu texto daquela
maneira. O momento de produção de uma obra ao mesmo tempo em que é
pré-determinado pelo artista e suas intenções também conta com elementos
fortuitos. As idéias, pensamentos inesperados e reações diversas de acordo com
os sons, aromas, cores e espessuras enchem de vida a mão que escreve no papel e
transformam um amontoado de descrições em personagens e paisagens. Isso
acontece da mesma forma que compartimentos de ossos, nervos e músculos
coexistem com instintos e emoções, ou seja, da mesma forma misteriosa que se
faz o ser humano.
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