terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A independência feminina em Noite e dia, de Virginia Woolf



Seria o casamento amiúde baseado em interesses mesquinhos, como um contrato financeiro entre famílias, ou na lógica de que para evitar o medo da solidão o amor pode surgir até mesmo de uma convivência forçada? Impossível resolver essa questão quando não temos conhecimento de todos os casos, porém a licença poética permite a literatura sobrevoar pelo assunto através de personagens fictícios, tão reais quanto nós mesmos, que vivem milhões de possibilidades e discorrem sobre o matrimônio em seus dramas pessoais. 

Com os livros de Jane Austen tive o primeiro contato com a sociedade e o cotidiano da mulher do século XIX. Através da ironia e das falas afiadas de personagens femininas marcantes descobri o funcionamento do sistema que reprime a mulher lhe oferecendo a vida doméstica como única forma de ser feliz. As mulheres desejavam casar-se desde cedo, pois temiam o julgamento alheio das fofocas e olhares tortos reservados às “solteironas”. Então surgem vozes, digo, sussurros por liberdade na escolha de seus maridos. Elizabeth (Em Orgulho e preconceito) parece ter tido muita sorte no casamento proposto por Mr. Darcy, o homem que se revelara ideal apesar do estranhamento por seu silêncio e aparência no início da história. Mas desde essa época até as chick-lits mais atuais sinto falta de protagonistas que anseiam por realizações mais individuais, infelizmente, se formos analisar dados das obras mais lidas de grandes editoras, elas ainda colocam um marido como acessório da mulher feliz e bem resolvida. Parece que essa figura do príncipe encantado não morre tão cedo.

Eis que encontro o que procurava na obra que menos ouço falar de Virginia Woolf, Noite e dia (1919). Devorei as 639 páginas desse livro em poucas semanas, tão apaixonada por Katharine Hilbery e seu olhar perdido nas estrelas quanto por Mary Datchet e sua luta pelo direito do voto para as mulheres. Diz se que esse é um romance convencional, feito para recuperar as energias da escritora dedicadas à A viagem, seu primeiro livro publicado, mas só a complexidade dessas duas personagens já fazem da obra um marco na historiografia literária. 

Diante da biografia de Virginia Woolf, escritora inglesa, feminista, já se espera riqueza na estrutura da narrativa e símbolos de personagens que exaltam a inteligência das mulheres diante da área que lhes apetece dedicar estudos e conquistas. E a história se desenrola como em uma grande brincadeira em que relacionamentos amorosos estão em segundo plano e as preocupações estão voltadas a discussões literárias, matemáticas, políticas e filosóficas. Katharine se esquece de servir o chá às visitas, porque está concentrada na própria imaginação fértil. Ela sai de casa sem as luvas enquanto pensa em si correndo por bosques, livre e solitária. 

Termino com um trecho em que Mary percebe a alegria de viver sem estar à mercê do amor por um homem, livre para buscar novas perspectivas entre cores e formatos das ruas da cidade:

"Estava contente com o movimento ao longo das ruas iluminadas, ao ar livre. Palpava, dolorosamente, com temor, mas também com estranha esperança, a descoberta que fizera por acaso essa noite. Estava livre, uma vez mais, ao preço de uma oblação, a maior talvez, que podia oferecer, mas não estava mais, graças a Deus, amando. Ficou tentada a gozar essa primeira fase da sua liberdade em alguma dissipação; na plateia do Coliseum, por exemplo, uma vez que passavam pela porta. Por que não entrar e celebrar sua independência da tirania do amor?"
[WOOLF, Virginia. Noite e dia; tradução Raul de Sá Barbosa. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2008.]

domingo, 20 de novembro de 2016

Se você pensa que o meu coração é de papel...

Sabe aqueles Assessores de Porcaria Nenhuma que trabalham lá em Brasília?


Tudo aquilo que todo mundo espera da capital foi caricaturado nessa série de sete episódios. Pois é, coisa boa acaba rápido mesmo, ou pelo menos é tão bem montada a ponto de alcançar o objetivo e deixar o gosto bom e a barriga dolorida de tanto rir de quem relembra.

Com ótimas sacadas no roteiro e muito trocadilho de duplo sentido, Selton Mello, Andréa Beltrão, Pedro Paulo Rangel, Marisa Orth e Drica Moraes deram tão certo juntos que, em casa, você sente o encanto da comédia sendo feita por quem entende.

A história começa quando Tales, funcionário público, é promovido e se torna chefe do Fichário Ministerial de Documentos Obrigatórios e de quebra, ainda lhe cai uma estagiária do céu. A animação pelo novo cargo logo se esvai quando ele descobre que o FMDO é uma repartição sem função útil e portanto, os funcionários públicos não tem ordens a serem recebidas. A solução é reinventar a missão e criar novos objetivos para colocar os preguiçosos para trabalhar, a nova atribuição é “Falar Mal Dos Outros” e encontrar os maiores escrotos nas fichas para lhes dar pequenas lições de moral.

Os próprios funcionários acabam revelando o mal caráter entre si em cada episódio (ou dia de trabalho). Fofocas, apelidos, assédio, malandragem e uso das funções para benefício próprio permeiam o cotidiano (deles ou nosso?).



E o que Brasília realmente mostra? Que as faíscas de amor estão em toda parte, mas será que a lentidão do tempo não está relacionada a essas ruas superlotadas de pessoas vazias? Talvez uma multidão de quem já perdeu o sentido da palavra -proteção- e aos berros nós podemos implorar por ajuda qualquer dia, mas hoje mesmo não daria, tem a aula e aquela apostila pesada demais na bolsa atrapalha qualquer iniciativa.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

A fantástica solidão no tempo

Em Cem anos de solidão, uma peste perturba a população de Macondo; a doença da insônia assombra às pessoas porque mata suas lembranças e deixa corpos vazios sob efeito da “alucinada lucidez”. Eu poderia culpar Gabriel García Márquez e dizer que contrai a doença depois do contato físico com os personagens tão sólidos que ocuparam lugar na minha casa durante aquele tempo. Mas isso só seria conveniente para justificar uma condição própria de longa data: quando a vontade de ler histórias supera a necessidade de dormir e a memória falha talvez pelo excesso de informações, talvez pelo sono acumulado.

Pensei em uma explicação piegas para situação, consiste em acreditar que o ritual de leitura na madrugada é a experiência mais sagrada possível de um relacionamento com os livros, porque nessas horas o silêncio tece ligações ininterruptas. Depois, as cores da aurora iluminam as páginas do livro de um jeito delicioso, é irresistível a possibilidade de sentar na varanda e continuar lendo. Logo está na hora de trabalhar e garantir se não a sobrevivência pelo suor, ao menos a ilusão de estar fazendo algo para contribuir nos giros das engrenagens sociais. Terminadas as obrigações, resta escolher entre voltar a ler enquanto submersa em bebidas energéticas ou entregar os pontos ao inconsciente. Por isso a contagem de horas é o maior desafio da sanidade.

Portanto, assumido o desequilíbrio tonto dos que não dormem, ainda tenho coragem de compartilhar reflexões de uma mente desgastada. E o que tenho investigado é o responsável pelo prazer da leitura: o sentimento de intimidade com o texto. Desvendar metáforas e entender referências muitas vezes supera uns diálogos cotidianos desinteressados. Ainda mais porque parece que chegamos na época de Fahrenheit 451 em que não há conversas que não sejam intermediadas e até distorcidas por tecnologias. Fatos da vida real têm que  competir com distrações dos aplicativos de smartphones em nossas mãos. Daí quem não quer se sentir sozinho, aprende a ler e, na madrugada da civilização, aprende como os sentimentos têm corpos nas letras.

E como a solidão está representada na literatura?  

Mesmo que o personagem que tenho maior afeição percorra longos caminhos, com os pés machucados, aflito e sem ter com quem conversar, enfrentando adversidades meteorológicas, inimigos humanos e monstros indescritíveis e isso me cause mal estar, ainda tenho que admitir que sua existência é confortante. Durante a leitura, sendo parceira de aventuras, sou fiel ao compromisso de expectadora: dar atenção a cada movimento é como cuidar de alguém querido. Faz sentido, já que eu sou tão responsável pelo personagem existir no mundo quanto seu criador.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os últimos adormecidos no orgulho e na segurança do bronze e do mármore

O bom ensaísta sempre me pareceu ser um sujeito deslocado em meio ao caos da multidão. Imaginem alguém imerso em pura aflição porque não consegue olhar para todas as direções ao mesmo tempo e registrar a sincronia dos gestos das pessoas em harmonia (ou não) com a natureza. Mas mais do que flanêur das ruas, ele deve escrever sobre assuntos que o deixam desconfortável. Assim, mergulha nas contradições humanas e se sente mal por fazer parte delas. Além disso, sabe escolher um título enigmático para seus textos.

Porém, ao olhar para os lados e enxergar as mesmas paredes vazias, resta ao escritor investigar até onde vai sua imaginação desestimulada. É o meu caso, tenho acumulado um número preocupante de dias sem sair de casa e portanto, há muito tempo não sou obrigada a encarar a vida real. Troquei passeios longos por voltas e mais voltas ao redor da ideia fixa que a solidão que entregou de bandeja.

E a perigosa ideia fixa que tem rondado meus dias é sobre ter que lidar com a dificuldade de assumir uma vida autêntica, o que talvez seja uma característica intrínseca da luta individual humana. Pois então, já passou da hora de resolvermos esse problema, nada é invicto só porque existe há muito tempo.

Entram em cena os últimos adormecidos na frieza de seus personagens perfeitos. São as pessoas que precisam colocar uma máscara para tentar falar a verdade, o inverso da vida autêntica. Essa não é a metáfora que o artista utiliza, nem tem a ver com o meio de expressão, ela é o pacote de estereótipos que assumimos para tornar mais fácil a aceitação social. Quem segue o padrão, exalta as modas, louva os jornais e obedece conselhos vazios sem questioná-los assinou um contrato, esse infeliz vendeu a alma para nunca mais receber críticas de ninguém. Ora, o resultado não poderia ser outro: quem preenche essa massa é gente de mentira e não tem porque perder-se tempo avaliando esses manequins de loja.

É tão bom expor opiniões e manifestar seu jeito de mundo melhor, afinal cada um sabe o peso que permanece depois dos desafios enfrentados e só se transforma dor em sabedoria para impedir que futuras gerações carreguem o mesmo fardo desnecessário de um lado para outro. Mas, apesar das boas intenções embutidas nas palavras, a necessidade da máscara incomoda, até porque precisamos nos impor em horas inesperadas e aí quem for pego desprevenido fica calado.

Só a arte permite o sujeito encarar sofrimentos insuportáveis e sair com fôlego de ser quem realmente deveríamos ser. Porque ela nos faz perceber o tamanho da nossa culpa.  Tento levar a sério aquilo que acredito, assim como sei a evolução das ideias profetiza várias rupturas e desdobramentos ideológicos baseados em leituras e influências, é possível que eu ainda descubra que a solução dos meus problemas era bem mais simples e menos dolorosa, mas aposto que muitas respostas ainda chegarão nessa guerra contra o tédio, há dias sem sair de dentro da minha casa.

sábado, 18 de julho de 2015

A autobiografia na literatura


O ator, além do que é necessário para decorar suas falas, costuma tomar um tempo para se preparar para uma representação. Ele precisa acessar o personagem de alguma forma; assim, ele tem a garantia de que seu trabalho será notado e aplaudido por ter convencido a audiência. Qualquer um consegue notar uma interpretação forçada – na maioria das vezes ela se parece com uma gravação de áudio acompanhada de gestos mecânicos. Porém, quando bem preparado, ele não precisa sequer tentar lembrar qual a próxima ação do roteiro, ele a comete como se fosse algo natural e reage às situações como se fossem as de sua vida. E então, isso não é fingir; a arte reflete tudo o que conhecemos ou desejamos conhecer. Portanto, quem escreve a história que será encenada tem a difícil missão de demonstrar a existência de autenticidade viva, algo que o leitor possa identificar. Nesse caso é impossível resistir à tentação de acrescentar disfarçadamente experiências pessoais ou de conhecidos. Aprendemos com as nossas quedas e observando os outros que caem e suas reações; se o autor tirou uma lição válida da própria vida, faz sentido que ele queira compartilhar isso com outros.
Posso problematizar aqui, então, as noções de imitação e representação quando se tornam complexas por se tratarem do autor falando de si. Muitas vezes enfrentamos obstáculos na vida que parecem instransponíveis; esses escritores encontraram a solução na literatura e, de alguma forma, renasceram após concluir uma obra, com todos os seus estorvos. E quando a intimidade é escrita de forma tão nua e frágil ainda há a possibilidade de não se expor tanto, a sua história de vida pode se disfarçar na forma de alegorias ou personagens fictícios.
A interpretação do texto dito fictício somada às informações biográficas do autor cria a sensação de mistério a ser descoberto pelo leitor quando a trama e as notícias da vida real têm pontos em comum. Acontece que temos contato com o livro, aprovamos, conhecemos os personagens que nos pegam pela mão e até apagam o desconforto que sentiríamos por invadir de tal modo outras vidas possíveis. Depois, ao terminar a história, fica a saudade, procuramos capítulos e trechos soltos pela rua até que chegamos à casa do autor e não há ambiente mais propício a obsessão. Queremos olhar pela janela, brincar com o cachorro tão parecido com o do livro, rever objetos e identificá-los como se já tivessem nos pertencido.
Reparamos que escritores com histórias de vida conturbadas despertam mais facilmente a tendência do leitor a relacionar suas obras com fatos. É como se esperássemos uma confissão ou pedidos de socorro entre um parágrafo e outro. A escritora inglesa, Virginia Woolf, tem uma biografia repleta de experiências traumáticas e nela nos acostumamos a encontrar depoimentos sobre sua fragilidade emocional e tendências depressivas que a levaram a cometer suicídio em 1941. Em suas obras, então, costumam-se identificar relações diretas da sua vida cotidiana com a dos personagens. Muito do cotidiano da autora também está em seus diários, que ela começou a escrever em 1897, por volta dos seus 15 anos. 
Depois da morte do irmão, Virginia demorou 14 anos para escrever O Quarto de Jacob. Esse é considerado o seu primeiro romance modernista, ou seja, o trauma causou uma mudança, abalou estruturas emocionais e depois de tanto tempo mastigado produziu o conteúdo de um livro. Parece ter sido um meio, mesmo que possivelmente doloroso, da autora enfrentar o fantasma do passado e seguir a diante.
Virginia Woolf não concentrou toda a sua atenção em objetos e casos referentes a sua família ou seus traumas pessoais, ela refletiu muito sobre a escrita, atividade mais gratificante de sua vida e essência de sua análises estéticas e filosóficas. Cercada por livros, logo após transformar sua casa em uma editora, ela esteve sempre atenta aos problemas enfrentados por outros escritores e motivos de crítica dos estudiosos. Isso se refletiu em sua ficção, como no conto An Unwritten Novel em que o narrador encontra com os olhos de uma mulher com expressão muito triste e inicia um monólogo silencioso sobre a dona daqueles olhos, imagina o que ela está indo fazer e chega a criar pensamentos preocupados que estariam passando pela cabeça daquela mulher assim como um autor escreve falas ao seu personagem:
The unhappy woman, leaning a little forward, palely and colourlessly addressed me — talked of stations and holidays, of brothers at Eastbourne, and the time of year, which was, I forget now, early or late. But at last looking from the window and seeing, I knew, only life, she breathed, “Staying away — that’s the drawback of it —” Ah, now we approached the catastrophe, “My sister-in-law”— the bitterness of her tone was like lemon on cold steel, and speaking, not to me, but to herself, she muttered, “nonsense, she would say — that’s what they all say,” and while she spoke she fidgeted as though the skin on her back were as a plucked fowl’s in a poulterer’s shop-window. (WOOLF, 1921)
            O narrador, que observa um desconhecido e a partir de uma simples particularidade desenvolve um trama e insere sentimentos e indagações sobre aquelas formas, é como o escritor que tem poder para escolher memórias e desenvolver grandes histórias. Virginia marca de forma simbólica algo que ela faz, toma como ponto de partida uma mulher de olhos triste que talvez tenha realmente visto em um trem certo dia e acrescenta tantas divagações que por fim, o leitor se perde na história e só retorna a realidade no final do conto quando o narrador também sai do devaneio e percebe que havia criado uma biografia falsa completa para a mulher. Da mesma forma que os leitores fazem com os escritores quando acreditam fielmente que eles entregam detalhes pessoais.
Considerando o modo de composição, complementamos a análise sobre a forma como o leitor se relaciona com o texto e, por isso, não podemos deixar de pensar quais foram os motivos do autor para estabelecer seu texto daquela maneira. O momento de produção de uma obra ao mesmo tempo em que é pré-determinado pelo artista e suas intenções também conta com elementos fortuitos. As idéias, pensamentos inesperados e reações diversas de acordo com os sons, aromas, cores e espessuras enchem de vida a mão que escreve no papel e transformam um amontoado de descrições em personagens e paisagens. Isso acontece da mesma forma que compartimentos de ossos, nervos e músculos coexistem com instintos e emoções, ou seja, da mesma forma misteriosa que se faz o ser humano.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Sobre se atrever a desvendar Ingmar Bergman

Meu primeiro Bergman foi Sétimo selo. Passou-se toda uma experiência marcante, conhecer um grande diretor, jogar xadrez com a Morte e esperar respostas do Deus, que só o homem soube desenhar, mistificar e calar em apenas um ato. Castigar-se a si próprio com o horror de abrir os olhos diante da peste e perder a palavra, porque a beleza se solidifica em inúmeros formatos, inclusive no alimento e a energia óbvia necessária para cumprir funções. Mais uma vez confusas, não se sabe se livre arbítrio ou medo, como o do tremor das pernas, é que levam multidões a caminharem cegas para o fim.

Esse foi o efeito, não consegui parar de traduzir tudo como um grande simbolismo para o resto da existência das pessoas e das coisas e um pouco mais do inominável. Tanto que depois tive que rever e fazer justiça a que se deve a todo filme, curtir a história, saborear as falas e interpretações, olhar as paisagens e lidar apenas com o explícito.

Depois demorei um bocado pra assistir outro filme dele, liguei o computador à noite e lá estava Persona me esperando. E sabe quando você não termina a frase e o outro já está concordando? A atriz parou de falar. O silêncio não poderia ser mais propício, quando se trata de inconsciente e busca por conhecimento interior. Elizabet vai para uma casa afastada acompanhada de uma enfermeira, Alma. Lá a comunicação entre as duas nunca falha, enquanto Alma se liberta de muitas histórias e pensamentos antes guardados, Elizabet aceita o pedaço da (A)alma oferecido com sorrisos e olhares. Até que a relação entre as duas se torna densa demais, íntima, em uma adivinhação de pensamentos e sentidos quase assustadora. A ligação, que poderia se dar entre quaisquer seres humanos, chega ao limite físico e psicológico. Acontece que quem assiste também entra nesse jogo e se vê dentro dessas mulheres mesmo ciente da barreira imposta pela realidade.


O percurso vai de personagens desconhecidas, que se metamorfoseiam em amigas, irmãs, amantes, rivais até se confundirem na mesma pessoa. Algo de como o artista se une ao público através de sua obra. Fiquei pensando como é isso mesmo que espero do meu leitor, que me diga coisas, seus segredos e encontre uma gota de alívio nas palavras despejadas e demonstre tudo no olhar, mesmo que silencioso. A vontade de ser útil me faz a enfermeira de todos vocês. Mudos e procurando alguma informação útil e nova nessa casa a beira da praia. Às vezes desconfortável, mas, por favor, não há o que questionar mais nessas tentativas tolas de poeta enganada pela praticidade de escrever às madrugadas. Como se fosse curar alguma dor.

Ah, meu bem. Os filmes e os livros estão me deixando louca. Acabo de cochilar e sonhei com você pedindo sinceras desculpas a um cachorro. Que isso! Desculpa eu por ter-te trago até aqui. Só não quero perder agora a jornada assistida e só nos resta a posição de pacientes sobre a hora do lobo que se aproxima.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Baby, you are gonna miss that plane"

Venho sentindo que a vida colocou um saco de pipoca enorme no meu colo e começou o filme. E que produção bem feita, não diria confortável, mas com certeza é dessas que brincam com os sentidos e te fazem perder a realidade. Não importa a direção. Apenas caminhando para a saída de um grande pesadelo.

Em uma sala de cinema (inventada?) quase vazia, quem está ali sabe se conectar. Ainda mais com olhares de cumplicidade falando da liberdade de todos nós. E não precisa segurar na mão, solidão também preenche vazio, a companhia é um agrado, um carinho no pescoço às vezes.

Sobre o cotidiano queria tanto falar sobre as bobagens que a gente se ocupa. Dar nomes, obedecer ao estereotipo, preferir o gosto do vizinho ao nosso. Mas no filme e no universo paralelo que criamos a qualquer hora o importante é abrir a garrafa de vinho e colocar um samba. Ainda tá pensando nas dívidas? Escuta essa letra. Vai passar. Ainda tem muita sarjeta por aí esperando por nós. Delas eu saio rindo cada vez mais alto. Cada vez mais alta.

Temos para onde fugir, por isso me acalma pensar que a arte continua. Intacta, resistente a violência e a ignorância. Confia em mim. O carro pode estar todo quebrado na garagem, a casa em chamas, seu filho cuspindo na sua cara, mas uma hora você vai encontrar a criação, feita por outras mãos, talvez divinas, moldada no formato da sua libertação. Com calma, vai tirando seus preconceitos como quem tira a roupa na frente do espelho pra se admirar e sente o peso das dificuldades escorrerem em lágrimas.

"A eterna desventura de viver a espera de viver ao lado teu" me faz o diálogo sem sentido de todos os dias. E a oportunidade nem é tão imperceptível assim, a proposito, outro dia abri um livro e te vi me olhando através de uma música. Como em um portal da minha casa até a sua. Cada um iniciado em seu próprio meio. Porque nos meus textos sempre coloco uma frase para alguém que é só um (assim me engano).

Nos créditos vale ficar mais um tempo contemplando a impossibilidade das cenas tão bem desenhadas e o roteiro perspicaz, provavelmente escrito pelo maior paranoico. Nunca vi tanta necessidade de ligar uma coisa na outra. Isso não é um treinamento, ou aproveitamos a batida e seguimos no ritmo ou nunca desatamos o nó.

E a pipoca é aquela velha história, impossível comer só uma e quando acaba não tem porque se perguntar se foi exagero, com certeza caberia mais. Inclusive com coca cola pra ajudar a descer o que ficou preso na garganta. 

"I know"